Para contrapor a versão do Boi Falô que a Prefeitura de Campinas havia oficializado como única, iremos , a partir de hoje, publicar os mais antigos registros da versão tradicional de Barão Geraldo anteriores à única versão imposta pela Prefeitura (a partir de 1996 pela Secretaria de Cultura) APÓS a colocação da festa, criada em 1988, no calendário oficial de Campinas. Até o momento, na pesquisa dos historiadores, a primeira vez que a mídia publicou sobre o Boi Falô foi em 1973.
Esse artigo do historiador Jolumá Brito é, até hoje, o mais antigo registro da Lenda do Boi Falô já encontrado. Publicado no jornal Diario do Povo de 30 de junho de 1973, o artigo mostra a versão antiga e mais tradicional da lenda conforme ele coletou em Barão. É fundamental salientar que desde1964 havia uma SEMANA DO FOLCLORE promovida pela Prefeitura de Campinas em todos os meses de Agosto de cada ano e em nenhuma delas a lenda do Boi Falô foi citada. Além disso, essa semana era comandada por uma folclorista reconhecida nacionalmente, Alba Vidigal que fez pesquisas e alguns livros SOBRE HISTORIAS DE BOI EM CAMPINAS.
É claro que essa lenda ja era conhecida há muitos anos em Barão e pequena parte da região, mas apenas oralmente e na base da brincadeira e da descrença… Porém antes haviam pelo menos 3 versões: a versão de antigos empregados ou rendeiros da Fazenda Santa Genebra (que fala de um carro para atrelar os bois, mas não em Toninho ou em ano nenhum), a versão de Barão Geraldo (que não tinha Toninho nem ano, mas falava do Capão do Boi) e versão do movimento negro da zona sul de Campinas (Cemitério, Vila Industrial, etc), cujo principal personagem era Toninho).
Veja agora a primeira do historiador e jornalista (mestiço, considerado “negro” (ou mestiço” pelos movimentos sociais atuais) campineiro Jolumá Brito, pesquisador premiado com mais de 20 livros de pesquisa sobre Historia de Campinas e outros municípios da região, locutor de rádio e colunista da imprensa, fundador da Associação Campinense de Letras, e outras entidades.
O texto é do historiador e filósofo Warney Smith Silva que pesquisa a história de Barão Geraldo a quase 30 anos. Antes ele aborda o que as universidades e os pesquisadores sociais falam das lendas
O QUE É UMA LENDA E O SIGNIFICADO DA SEXTA FEIRA SANTA
“Em termos oficiais de intelectuais toda lenda, mito ou causo tem inumeras versões TEM INÚMERAS VERSÕES. O natural é que cada pessoa que conte , aumente um ponto E é aí que esta a beleza das tradições. Engtretanto, toda lenda, mito ou causo tem uma narrativa central comum mínima, (chamados de “mitemas” por Levi-Strauss), sem os detalhamentos de cada uma das versões.
A lenda do Boi Falô é uma dessas. Além disso ela não existe somente em Barão Geraldo (como muitos antigamente pensavam) Mas também é uma lenda do municipio de Capivari, e já foi registrada outras cidades, numa fazenda em Goiás, e até nos Estados Unidos (além disso, como sabemos há diversas lendas de bois que falam entre etnias africanas e na Índia em países onde bovinos são considerados seres sagrados).
A narrativa original e básica da Lenda do Boi não diz respeito ou tem a ver com a escravidão, mas com a manifestação de Deus no dia da morte de Jesus, a sexta feira de Páscoa. Conforme contam todos os historiadores e todos os registros mais antigos de Campinas, a Páscoa sempre foi, entre todas, a tradição católica e cultural mais importante e mais mobilizadora da História da cidade. De todas a que sempre foi fortemente respeitada e vivida intensamente ano a ano. A que tem maior quantidade de registros, produções , textos , documentos eventos etc. Mais do que o Natal. No século 19 , durante a Páscoa todos andavam de preto, as mulheres se cobriam todas de preto e não saiam de casa, exceto para ir à missa.
A tradição da Sexta Santa e da Páscoa foi criada pela Igreja Católica em um de seus primeiros concílios e imposta em toda a Europa, durante toda a Idade Média e também por toda a Era Moderna até hoje é o que justifica a Sexta Feira Santa como Dia de Luto Oficial e que – durante toda a Colonização – tornou-se uma das principais tradições do pais e o que justifica ser feriado.
Sabemos que o mito ou lenda do Boi Falô (de Barão) já existia desde o início do Século 20 porque vários antigos moradores de Barão, vivos em 1920, relataram ter ouvido o “causo”. Porém isso se deu somente após o primeiro registro da lenda em Campinas, que foi do primeiro historiador “mestiço” da cidade, Jolumá Britto, (considerado como “negro” pelos movimentos hoje) no jornal Diário do Povo de 30 de junho de 1973. Além de ter sido o maior cronista, pesquisador e divulgador da História de Campinas, Jolumá Brito fundou a Academia Campinense de Letras , da qual foi presidente e escreveu mais de 20 livros sobre Historia de Campinas e outras cidades da região.
Jolumá foi um dos autores que mais pesquisou e escreveu sobre historia de Campinas e sobre a Semana Santa. Na época em que ele escreveu no texto abaixo, a Prefeitura de Campinas ainda realizava anualmente uma Semana do Folclore coordenada pela professora Alba Vidigal no mês de agosto E EM NENHUMA DELAS abordou o “causo” do Boi Falô não sabemos porque (As semanas de folclore ainda duraram até pelo menos os anos 1980). Presumimos que seja uma desvalorização mesmo, por preconceito, com o que nasce localmente – como ocorre no Brasil, só é valorizado décadas depois. Mas também percebemos que a versão tornada oficial pela Prefeitura de Campinas não era conhecida em Barão. Provavelmente em Campinas e originada em torno do culto ao túmulo do ex escravo e capataz da Fazenda, Toninho. Que historicamente já era capataz quando Geraldo assumiu a fazenda em 1870 e se tornou “milagreiro” após seu túmulo ser trazido para ao lado do túmulo do Barão, após a morte dele. Em Campinas havia uma outra lenda sobre Toninho que nada tem a ver com o Boi Falô. (a de que ele levou um tiro na perna e teve que ser amputada por causa da gangrena, quando já era livre e cocheiro do Barão poucos anos após sua morte. (ele nunca foi escravo doméstico). Mas nesse texto, Jolumá também comete alguns erros quando diz que o causo ocorreu na Fazenda Rio das Pedras ou ao dizer que o “solar” da Santa Genebra, mandado construir pelo futuro Barão em 1870, foi um “solar do conselheiro Albino” (que mandou construir a primeira sede da Fazenda Rio das Pedras em 1856, conforme ele mesmo cita em seu livro de memórias. E que nada teve a ver com o sobrado da Santa Genebra do Barão Geraldo, cujos moradores querem o Tombamento e preservação para futura visitação comercial.
Importante ressaltar também que Barão Geraldo tem mais de 20 causos ou lendas contadas pelos antigos. Praticamente todas adaptações de mitos ou lendas de outras partes do Brasil e do mundo. Como a do “corpo seco”, a do “boitatá” (que tem uma adaptação local) a das das “santas que andam” e várias outras que preparamos publicar em um volume especifico. Embora sem contar com o apoio de ninguém.
Então aqui está a primeira delas registrada em 1973. É BASTANTE POSSÍVEL QUE HAJA OUTROS REGISTROS ANTERIORES NOS ARQUIVOS DO DIÁRIO DO POVO, CORREIO POPULAR , PREFEITURA, JORNAL “A DEFESA” E OUTROS. Porém é preciso um bom financiamento e vontade politica para encontra-los:
“Dizem os moradores dali (Barão Geraldo) que no século passado, trabalhava lá na Santa Genebra um caboclo muito mandrião, bom trabalhador, mas respeitador, acima de tudo, dos feriados e dias santificados. É que, por tradição, também ali, o campineiro sempre manteve a de grande amor e devoção aos santos e às suas’ igrejas, respeitador sagrado das leis divinas! De maneira que, nas Semanas Santas, principalmente, na cidade campineira, depois do meio dia da sexta-feira chamada Maior, ninguém trabalhava: os carros de praça recolhiam-se, bondes não trafegavam, carroças ficavam paralisadas em seus abrigos e o silêncio em toda cidade seria, até, aterrador! Todo mundo corria para a igreja, para rezar ao Senhor morto! No interior desciam panos roxos também cobriam altares e imagens de’ santos, num respeito profundo de amor a Jesus!
Numa certa sexta-feira, a chamada “Maior” esse caboclo cujo nome a história não guardou, fora mandado pelo proprietário da fazenda, até junto a um pé de cabreúva onde estava parada uma manada de bois, para recolhê-la ao curral. Tanto assim é que o local ficou conhecido como Capão do Boi. E lá se foi o empregado, contrariadíssimo, para cumprir a ordem recebida. Daí a poucos momentos, no entanto, voltava ele esbaforido, correndo, suando em bicas e gritando para os companheiros: — “Volte, gentes! Eu tava tratando de tocar a boiada quando ouvi uma voz grossa, vinda de não sei donde, dizendo assim: — “Hoje é sexta fêra santa, num é dia de trabaiá… Num é dia de trabaiá… É sexta fêra santa!”
E, ingênuos como soía ser naqueles tempos toda aquela gente, onde se misturavam ao negro os italianos principalmente, todo mundo quis ouvir a história repetida pelo próprio que ainda estava com cara de assustado.
– “Verdade sim moçada: o boi falô memo, falô que em sexta fêra santa num é dia de trabaiá…”
Claro que ele ficou na boa vida o resto do dia e da tarde sonolenta que se derramava ali pelas redondezas da antiga fazenda de Nossa Senhora do Rio das Pedras.
Pouco depois o comentário tomava corpo e a história foi se repetindo de sítio em sítio, de casa em casa, de senzala em senzala, impondo mais respeito àquela gente toda que não se cansava de benzer e rezar pelo Senhor!
Até hoje, quem passa por Barão Geraldo e que conhece a história, lenda ou seja o que for, o faz mugindo feito boi somente para arreliar com os moradores dali: “Múúúúúúúúúú!
Jolumá Brito