por Warney Smith Silva
Não se sabe quando professoras e moradores de Campinas decidiram colocar o mito do escravo “Toninho” (do cemitério) junto ao mito ou lenda do Boi Falô. Isso provavelmente ocorreu no início dos anos 1980, final da ditadura militar, com a unificação e fortalecimento dos movimentos “negros” em torno da construção de uma oposição de “esquerda” para o “retorno à democracia”. Nesse período, diversos outros mitos e lendas políticas foram criados. Sobretudo nos setores mais radicais (de ambos os lados) como as lendas da “última cidade a abolir os escravos“, dos “barulhos de correntes” , dos “cemitérios clandestinos” que nunca ficaram comprovados. Claro que merecem e devem ser contadas. Mas como lendas, produtos da fé. E não de nenhuma Ciência ou razão.
O fato é que já sabemos que a lenda de “Antônio Africano” (o africano benzedor cujo corpo está enterrado ao lado do túmulo da família do Barão Geraldo) era bem pouco ou nada conhecida pelos antigos pioneiros de Barão Geraldo e seus filhos. Não só livros e documentos antigos comprovam a certeza dessa afirmação acima, como os documentos históricos das “Semana do Folclore de Campinas“, organizada todos os anos em Campinas, nos meses de agosto, pela então “Diretoria de Cultura” da Prefeitura, entre 1964 e 1986 corroboram essa certeza. Porque EM NENHUM DESSES ANOS a tal semana abordou QUALQUER lenda de Barão Geraldo ou Toninho, embora tenha falado de algumas de Campinas. E AINDA MAIS GRAVE nisso é o fato de que a Diretora de Cultura – a reconhecida folclorista Ana Vidigal – por todos esses anos em que organizou a “Semana do Folclore”, anunciou na imprensa local que “estava fazendo uma pesquisa sobre as “lendas de boi” em Campinas. E que depois disso, iria publicar. Até o momento, ainda não encontramos os documentos dessa pesquisa mas temos cópias dos opúsculos publicados por ela das lendas sobre “O boi” em Campinas. (nas Bibliotecas do Centro de Memória – Unicamp e de Campinas) E – é claro – ela decidiu focar no levantamento da manifestação do Bumba-meu Boi em Campinas. Fala bastante das origens da escola “Nem Sangue nem Areia” tambem. E só. Nem mesmo da lenda do Antoninho milagreiro a ex diretora de Cultura e pesquisadora falou. Seria um boicote? desprezo? por raiva ou racismo? Sobre isso, é importante lembrar que tanto Vidigal, como a Prefeitura apoiavam e trabalhavam na organização de diversas Festas Afro todos os anos em Campinas: No Taquaral (festas para Iemanjá e Oxum), no Centro de Convivência, nas Folias de Reis, nos Bumba meu Boi e no Carnaval, além das semanas.
LIVRO DA FOLCLORISTA ANA VIDIGAL, EX DIRETORA DE CULTURA DE CAMPINAS, E PESQUISADORA DOS FOLCLORES E CASOS DE BOI E DE NEGROS EM CAMPINAS. VEJAM NO ÍNDICE O QUE ELA LEVANTOU
Fiz extensas pesquisas por quase 10 anos atuais em DIVERSAS bibliotecas e arquivos (1) Na imprensa, a primeira menção do “Boi falô” foi publicada em artigo do historiador Jolumá Brito em 1973. E nem assim esse conto foi lembrado ou levantado nas Semanas do Folclore. A segunda menção que encontramos, até o momento, é de 1977 quando o repórter Alan Gomes entrevistou a portuguesa, dona Albertina Martins que chegou em Barão em 1925. A terceira , de 1983 foi uma entrevista com um dos líderes de Barão, Hélio Leonardi que conta vários casos locais . E entre eles, conta o Boi Falo como ocorrido entre um administrador, um escravo e um boi. Sem nomes. O 4º registro é do professor César Nunes que em 1983 realizou um trabalho de pesquisa em Barão Geraldo sobre a lenda do Boi e entrevistou o senhor Vadão de Oliveira que conta a versão mais bonita encontrada até o momento (também sem nomes ou ano) O 5º registro é o texto da carta de Gilberto Antoniolli publicada no Correio Popular em Março de 1988 pedindo a preservação da Lenda do Boi atribuido à essa mentira inventada pelo escravo “em “um grito de liberdade” que deu origem à abolição. (embora não cite o nome “Toninho”). O fato é que seu Gilberto foi um dos promotores da 1ª Festa do Boi Falô realizada poucos dias depois dessa publicação. Depois dessa, temos as versões de Orpheu Leonardi e a de Antônio Ferrari (que contesta a derrubada e destruição do “Capão do Boi” sem consultar a população);
Depois dessas 7 primeiras versões, todos os anos Prefeitura e a mídia de Campinas a partir de 1995 começou a colocar o Toninho Africano como o personagem que teria “inventado” que o boi falô como “resistência” ou “preguiça” E – devido ao forte trabalho de Ton Crivelaro e equipe, dos movimentos negros de Campinas e outras trupes – e com apoio da mídia de Campinas (geralmente o trabalho de Maria Tereza Costa) houve um constante fortalecimento do “centenário , do surgimento da lenda em 1888, da relação com a foto atribuída ao milagreiro Antônio Africano e finalmente a inclusão do próprio Barão na lenda, fortalecendo-a e construindo como se fosse um drama real entre um proprietário diabólico e chicoteador de pretos contra um miseravel pretinho franzino, que se recusou a trabalhar (dane-se que dia foi etc . Afinal o importante era comer macarrão, tomar cachaça e dançar à revelia da Senta Feira que historicamente sempre foi sagrada em Campinas)….
– Ao final desse levantamento temos até o momento, documentadas, 5 versões principais desse mito:
1- A primeira versão, obviamente, tem que ser a mais pura e original: a crença de que Deus se manifestou através do Boi, pois Humanos estavam desrespeitando o luto (tradicionalíssimo em Campinas) pelo dia da crucificação de Jesus.
2 – A segunda versão surgiu a partir dos primeiros filhos dos imigrantes que conseguiram se estabelecer em Barão. Desde 1922 , a campanha pela “modernização” do país veio crescendo muito forte nos grandes centros. Mas a partir dos anos 1940 e do governo de Getulio – era muito forte a propaganda pelo “moderno” pela “modernização do interior” e a ação dos governos contra a “pobreza e a miséria da vida rural”. Com isso, muitos sitiantes e pequenos produtores rurais queriam o “progresso” ( o capitalismo) e o fim da vida rural. Seja através de de adquirirem caminhões e máquinas rurais, da construção de estradas pavimentadas, de serviços de luz, água, telefone, e depois TV, de industrias que trouxessem muitos empregos e da criação de loteamentos para ampliar a população – e assim também aumentar as vendas. A “vagabundagem” ou o não trabalho era inaceitável e mesmo crime pelo Código Penal e sempre havia algum trabalho ou emprego para pais de família.
È nesse sentido que surgiu a 2ª versão que considera o fato como uma “mentira” (de um trabalhador, escravo, caboclo etc) “preguiçoso” para não trabalhar. Há pessoas que contavam o a lenda, argumentando ainda que “ninguém podia desobedecer o patrão”. Outros argumentavam “se era escravo, não podia desobedecer”. E era com essa concepção crítica, de brincadeira, de “mentira” que essa lenda começou a ficar famosa , Principalmente por certos trens de passageiros ou através dos jogos de futebol quando vinham equipes de fora em caminhões ou quando o time de Barão (o C.A. Barão) ia jogar fora. ANtigos moradores contavam que certos passageiros no trem gritavam (geralmente quando tinha jogo) ou torcedores em caminhões gritavam “O que que o Boi falou?” e recebiam respostas agressivas.
3 – A terceira versão é pouco conhecida ou são poucos os que a falavam no passado . Nessa versão contavam que numa sexta feira da paixão um capataz da fazenda Santa Genebra mandou um pequeno adolescente, um “menino” , “caboclinho” etc, ir buscar um boi no Capão do Boi. (Naquela época crianças trabalhavam e muito). Ele foi a pé e levando seu cachorro E quando tocou o boi, este se levantou e disse que nao era dia de trabalhar. o cãozinho latiu muito e os dois voltaram correndo e depois voltaram com o capataz.
4 – a quarta versão provavelmente surgiu entre visitantes e adoradores do tumulo de Antônio Africano no Cemitério da Saudade. De um lado, contavam que o Barão era um homem bom e muito grato a Toninho e por isso, além de alforriar Toninho, mandou fazer um tumulo ao lado do dele como agradecimento. Da mesma forma , numa simples contraposição, outros diziam que o Barão era muito mau. Que mandou matar Toninho e ordenou e pagou para o enterrar ao lado do seu. Também ha a versão de que Antonio Africano era um capataz extremamente duro e violento com os escravos… (como um capitão do mato). Mas essas versões desprezam o boi falô. Alguns disseram que isso ocorreu após o episódio do boi…. Seja como for essa versão bem ou mal do Barão Geraldo ou de Toninho, não eram conhecidas em Barão. Suponho que tais versões são da décadas de 1960/70 entre comunidades de pretos bastante religiosos praticantes não apenas de uma religião.
5 – Por fim a 5ª versão é a que a maioria conhece hoje, por ter sido construída pela mídia de Campinas juntamente com a Prefeitura após 1988: a de que o próprio Barão (ou seu capataz, a mando dele) teria mandado o “escravizado” Toninho ir buscar o boi para “atrelar” em um carro de boi E que isso teria ocorrido em 1888. E quando o boi se recusou a levantar e ir com Toninho, o Barão mandou obedecer o boi e levou o “escravizado” para trabalhar em sua casa até ele falecer.
Nesse ano de 2024 em que deveríamos celebrar os 120 anos do falecimento de Antônio Africano (inclusive eu, devido à tragédias pessoais que me ocorreram este mes) deveríamos DISSOCIÁ-LO DE VEZ E OFICIALMENTE da Lenda do Boi Falô. E a evidencia lógica de que lendas não tem datas definidas. Deveríamos RESPEITAR a lenda de Antônio Africano O PRETO VELHO MILAGREIRO ,em respeito às CENTENAS de placas de agradecimento pregadas em seu tumulo ate o chão desde pelo menos os anos 1950.
E também respeitar a Sexta Feira Santa, não apenas pela cruxificação de Jesus. Mas o importante é impor suas “verdades” goela abaixo e menosprezar os que discordam delas , comer macarrão, beber cachaça e dançar.
Warney Smith Silva é historiador (USP) e autor do livro “Barão Geraldo , a luta pela autonomia (1910-1960) – à venda pela Editora Pontes.